uma breve reflexão acerca de Prompting Performance: Text, Script and Analisys in Bryn Harrison’s être-temps, de Nicholas Cook.
Lino Guerreiro
linoguerreiro@me.com
No seu artigo Prompting Performance: Text, Script, and Analysis in Bryn Harrison’s être-temps (Cook, 2005), o autor foca entre outras coisas, a forma como a notação rítmica complexa utilizada pelo compositor Bryn Harrison, pode influenciar a performance, salientando ainda que essa interação entre a notação e o intérprete necessita de ser renovada em cada nova apresentação. Cook percorre um caminho baseado em diversa documentação acerca da obra être-temps de Bryn Harrison, e recorre a alguns artigos de sua autoria para contextualizar diversos pontos de vista. No final do artigo ele estabelece uma relação entre a obra de Harrison e a música em geral.
Partindo de um argumento seu utilizado num outro artigo, Cook começa por estabelecer que a distinção entre a improvisação no jazz e “a prática musical dos compositores clássicos ocidentais do período da prática comum” já não existe. Para isso utiliza duas citações de universos distintos. No âmbito do jazz uma descrição de Ingrid Monson:
Dawson anticipates and reinforces Tucker’s continuing triplet rhythms in measures 5 and 6 by playing a triplet-based fill between the snare, tom-toms and bass drum…. [Dawson] reinforces the flow of triplet eighths in the solo bass line … his accentuation on the snare articulates a quarter-note triplet against this flow that pushes towards completion on beat 3 of this measure. Dawson could not have known for sure whether Tucker would continue with eighth notes in measure 6 but correctly anticipated that he would…. While Dawson’s decision to play triplets in measure 6 might be predicted in a syntactic sense … there is nothing that could have predicted the exact choices made by these individual musicians. Such spontaneous, fortuitous moments of coming together or hooking up are highly prized by musicians.
Cook, N. (2005)
E um relato de John Potter, acerca de uma passagem da Missa Victimae Paschali do compositor da escola franco-flamenga do Renascimento, Antoine Brumel:
The superius and bassus enter together but have to negotiate the tempo, since there is no movement on the second beat. This immediately means that the two singers are in very close aural contact with one another. The altus imitates the superius half a bar later, so he has to have been in similarly close contact with the superius, who has been giving him the music. At the end of bar 1 for a brief instant the three singers sound a G, an A and a B flat simultaneously. It is only a passing moment, but it creates a moment of acute pleasure that they may wish to prolong…. There is a high degree of mutual trust as the scales rise and fall…. [T]he voices are setting up patterns of tension and relaxation, acutely conscious of each other, both seeking to accommodate each other’s desires and to satisfy themselves.
Cook, N. (2005)
Talvez a principal questão destas duas citações resida na importância que existe em ouvir os restantes músicos no âmbito da performance, sublinhando assim uma constante negociação entre os acontecimentos, sejam estes, dinâmica, articulação, timbre ou outros.
Com base na partitura de Bryan Harrinson, Cook desmonta o paradigma da “performance como reprodução” começando por nos mostrar que embora pareça só isso, a reprodução da performance, (algo que seria a reprodução fiável de uma partitura), é precisamente o contrário. Não querendo aqui relatar o artigo de Nicholas Cook, este sublinha que a performance é um compromisso interpretativo com a notação, que só pode ser feito em tempo real, e deve ser renovada em cada nova atuação. O envolvimento com a notação musical é um processo de duas vias, segundo Cook. O veículo através do qual a performance adquire qualidades de improvisação, e o resultado da interação em tempo real que produz uma energia, que de outra forma não estaria lá.
Ao longo do artigo Cook guiou-nos, com o intuito de destacar três pontos determinantes. Segundo o pensamento de Bryn Harrison, há espaço para o intérprete:
I wouldn’t want to feel I was one of those composers who feel that there’s no flexibility in terms of what the player can bring to a piece, I think that’s where the sort of human aspect comes in and I think that that’s the really, really important part of music-making as far as I’m concerned.
Harrison, B.
Assim, neste primeiro ponto Cook salienta a importância da criação de um espaço para a contribuição criativa do intérprete e questiona até que ponto é que a música não surgirá do próprio ato da execução.
Num segundo ponto destaca a importância de trazer as vozes dos intérpretes para a análise da performance, isto se hipoteticamente apenas os teóricos tenham sido ouvidos nas últimas décadas, no que respeita a este assunto. A estes faltará a notação, e qualquer análise crítica será incompleta e exclusiva à performance, ao som.
Cook termina com um terceiro ponto onde afirma que o “significado performativo” que desenvolveu ao longo do artigo é comum a toda a performance musical, em qualquer universo musical, e não idiossincrático de uma determinada música.
De todas as contribuições que podemos encontrar neste artigo, aquela que mais despertou o meu interesse, consiste na relação direta entre a partitura e o som, ou seja, entre o grafismo utilizado no código musical e a performance musical propriamente dita. Penso que seja efetivamente importante olhar para estes dois conceitos à luz da nova musicologia, e considerá-los sempre na sua constante relação. Cook termina o seu artigo com a seguinte frase:
But to do justice at one and the same time to the sight and the sound of music is perhaps the most challenging demand we face in making sense not just of musical performance, but of the tradition of Western “art” music itself.
Após o resumo deste artigo de Nicholas Cook, apresento parte de um texto que escrevi em 2012, com o intuito de tentar demonstrar, que alguns destes conceitos estão presentes na minha linha de pensamento.
(…) a partitura musical é para mim um código que transmite parcialmente a nossa arte dos sons. Existe uma parte que não me compete a mim, enquanto compositor “codificar”, é nessa parte que reside a magia desta arte. Por acreditar nesta “fantasia”, espero sempre que a minha música possa ser interpretada de várias e diferentes formas, fazendo isto com que tenha o privilégio de ouvir diferentes e únicas interpretações da minha música. Logo, para quê discutir se uma colcheia está ou não no sítio certo, ou se a intenção está certa? Se assim o é, porque não tocamos só a nossa própria música? E já agora, não a deixar ser tocada por mais ninguém. Assim tudo estaria certo, e no sítio certo. Desculpem, mas eu prefiro ser privilegiado pela minha “fantasia”. Nunca se esqueçam que só vocês saberão o que realmente pretendiam, (no vosso coração, ou alma), quando através desse “código” escreveram algo que, para fatalidade da vossa absoluta certeza, não conseguiram transmitir!!!! (….. a colcheia estará mais uma vez no sítio certo (… isso ninguém pode negar (… e o resto??? (…)
https://linoguerreiro.com/m/words/ | Guerreiro, L.
Quando escrevo que a partitura musical é um código incompleto, é porque espero que sejam os intérpretes a concluir essa parte do “trabalho de criação” assim como um ator que dá vida a uma determinada personagem. Não são estas duas artes performativas? Após a leitura deste artigo não consigo deixar de pensar nas semelhanças entre este meu pensamento e a “criação de um espaço para a contribuição criativa do intérprete” que Nicholas Cook refere.
Também vejo a notação musical como veículo para criar diferentes sensações num leitor (intérprete), e desta forma considero, à semelhança de Cook, que é impossível dissociar a partitura da performance musical. Não quero com isto dizer que um intérprete deva sempre tocar com uma partitura, até porque defendo precisamente o contrário. Quero dizer sim, que num processo de aprendizagem a partitura é fulcral para a criação de uma interpretação pessoal. Doutra forma estaríamos a reproduzir (imitar) som, caindo assim no paradigma da “performance como reprodução” que Nicholas Cook também refere.
No âmbito da música de câmara, considero que as obras musicais estão em constante mutação em cada nova apresentação pública, dependendo estas de uma série de fatores externos, onde conceitos de “constante negociação de acontecimentos”, também estão presentes na minha visão acerca da obra musical.
Finalmente considero que estas características são comuns a todos os universos musicais, sendo mais, ou menos salientes em determinados universos. Assim o “significado performativo” que Cook nos apresenta, faz todo sentido, independentemente desses universos musicais.
Quando me refiro à minha música, sinto-me sempre tentado a descrevê-la como música que pode e deve ser vista (interpretada) das mais diversas formas, dando primazia a conceitos estritamente ligados aos que encontrei neste artigo de Nicholas Cook.
São inúmeras as vezes que me refiro à música que escrevo, como um produto final que resulta da soma do que eu escrevi, com o que chamo de “composição em tempo real”, onde considero que “o espaço para a contribuição criativa do intérprete” é um dos fatores mais importantes. Este conceito leva-me então a outro, (um) conceito de “obra aberta” nosentido em que, o contributo do intérprete é o momento em que a obra é concluída (encerrada), para aquela apresentação pública, ou gravação.
Senti-me impelido a escrever este pequeno ensaio, porque ao ler o artigo de Nicholas Cook, consegui descortinar diversos conceitos que me parecem indissociáveis de alguns dos meus pensamentos, que ao longo dos anos me acompanham. Parece-me que de uma forma ou de outra, por vezes, apontam para a minha “composição em tempo real” e (um) conceito de “obra aberta”.
Bibliografia
Cook, N. (2005). Prompting Performance: Text, Script, and Analysis in Bryn Harrison’s être-temps. Music Theory Online, 11(1).